Recordações



Quando comecei a trabalhar em rádio, com música e ouvintes, não selecionava nenhuma composição internacional. Primeiro, porque meu inglês sempre foi péssimo e além de não saber pronunciar de forma correta as faixas musicais, não há coisa pior que assassinar a língua alheia. E segundo, porque as traduções não eram lá essas coisas. Esse trauma de tradução surgiu quando eu li o que dizia a música do Eagles Hotel Califórnia. Foi terrível. Tem algo na música que diz assim: “Ela tinha um Mercedes Benz” o que me deixou frustrada. A melodia era tão linda... Então prometi pra mim, jamais querer saber a tradução de qualquer que fosse a música. Claro, existem as clássicas, e essas, são belíssimas de verdade. Uma delas é a música interpretada por Charles Aznavour, She. Nunca ousei procurar sua tradução, - não porque achasse que ela não tivesse beleza – mas porque a voz marcante e romântica do intérprete, já me dizia muito.
Porém, em uma conversa por telefone, um amigo traduziu-a para mim e naquele instante, minha alma foi levada para profundas recordações. Com certeza, ela seria a trilha sonora de um amor que vivi há alguns anos.
Conhecemos-nos em um chat de uma operadora de celular e sempre estávamos a conversar. Entre as palavras ao telefone e o contato pessoal, passaram-se quinze dias. Nos encontramos em um restaurante de minha cidade e depois do almoço, ele pediu-me em namoro. Porém meu coração estava envolvido platonicamente com outro alguém e por este motivo, não aceitei o pedido feito com tanto carinho.
Certa vez, eu estava em casa, com lágrimas a escorrer pela minha alma e derramar pela minha face. Meu telefone tocou. Era ele. Sentiu minha voz chorosa e mesmo sabendo que as lágrimas que eu derramava não eram nem de longe por sua causa, saiu de sua cidade, e veio em meu auxílio, chegando em minha casa, às 22h, para me abraçar e dizer, “Meu bem, por favor, não chore”. Com o passar do tempo, nosso contato tornava-se mais estreito e três meses depois de nos conhecermos, ele refez o pedido, aceitei e então, minha vida mudou completamente.
Se eu não sabia o que era amor, fiquei sabendo. Se eu não tinha provado um beijo apaixonado repleto de delicadeza, provei naqueles lábios. Se eu nunca soube o significado de carinho e devoção, foi em seus braços que passei a saber.
Surpresas eram preparadas por ele para ver o sorriso aflorar em meu olhar, café da manhã na cama, ver golfinhos no mar em noites de lua cheia, sorrir das bobagens da vida, ter plena convicção, certeza de ser amada...
Nossa trilha sonora era composta por boleros, principalmente “La barca”, que ouvíamos na voz do porto riquenho, Luís Miguel, embora, eu já conhecesse a versão interpretada pelo Trio Iraquitan (o rádio nos faz voltar ao passado). Na verdade, La barca, é uma música triste, mas fala de um amor que ultrapassa os limites do tempo.
Éramos tão grudados, que se eu estava em algum lugar onde ele não se apresentasse, a pergunta era clara e objetiva: “Cadê o amor?” E feliz, respondia onde estava aquele anjo me trazia uma torrente de felicidade.
Um dos dias mais felizes da minha vida foi quando ele me pediu em casamento. Não sabia se eu estava no céu, ou se os anjos vieram até mim... parecia que eu estava em um filme romântico de final feliz. Parecia...
Tudo foi preparado, marcado. Seria uma cerimônia simples, de poucos amigos, ao por do sol, em um pequeno jardim de frente para o mar e a Ave Maria de Schubert embalaria os meus sonhos mais pueris... Contudo, se a morte não separa, a vida o faz por si. E parafraseando Renato Russo, o pra sempre, sempre acaba. Resguardo-me o direito de não falar o motivo da separação, mas não me privo das recordações, dos dias felizes que tive porque as marcas estão dentro de mim.
A música de Charles Aznavour, nunca fez parte de nossa seleção musical, mas a cada vez que ouço ou leio sua tradução, tenho certeza que eu fui tudo o que esse poema diz na vida daquele ser que conseguiu extrair o melhor que minha alma poderia dar.

Correspondências



Ela tinha sonhos e expusera todos em uma carta. Ele tinha segredos os quais confessava a amada no papel em branco. E assim, trocavam confidências.
Começaram a se conhecer lentamente. Não se sabe ao certo como tudo começou; sabe-se apenas que um adorava ler o que o outro escrevia.
Falavam amenidades, coisas do cotidiano e a cada carta chegada à amizade entre ambos crescia. Eram cúmplices, leais, nada escondiam nas linhas escritas e muitas vezes mal traçadas tamanha a emoção que os invadia.
Elas, as cartas, chegavam uma vez por semana, tal qual doses homeopáticas a querer mitigar uma saudade sem remédio. O carteiro tornou-se o amigo que levava em suas mãos a emoção daqueles enamorados. O uniforme amarelo e azul sinalizava que a felicidade estava a caminho.
Ela se arrumava, perfumava, penteava para receber em suas mãos a felicidade escrita a pena. Era como se naquele momento fosse abraçar o homem de sua vida.
Ele, com toda elegância, recebia do carteiro, agora amigo, a missiva da amada. Quando abria o envelope, era como se as rosas se abrissem aos seus sentidos. O perfume dela estava ali para concretizar o abstrato amor.
Nunca trocaram fotografias. Não porque se achassem desprovidos de beleza, mas porque não queriam quebrar o encanto de imaginar.
Dizia ela, ter cabelos negros como a noite sem luar, anelados como caracóis e longos até a cintura, véu que consagrou à Santa Rita. Clara feito porcelana tinha boca pequena e rosada, emoldurada pelo contorno bem marcado de seus lábios. Os olhos eram marcantes, expressivos tais como exóticas pérolas negras e reluzentes como a estrela da manhã. Estatura mediana, pés pequenos como fada e mãos macias feito seda.
Ele dizia ter ombros e braços fortes, como a convidá-la ao abraço. Alto como um nobre, pele morena feito cravo, olhos profundos como o Velho Chico. Seus cabelos eram lisos, prontos para o afago, suas mãos eram delgadas e firmes, como a querer conduzi-la por uma estrada de sonhos.
A letra dela era delicada, redonda, extraída de um caderno de caligrafias. A dele era forte e marcava o papel em branco, como se quisesse marcar a alma da amada.
“Adoro-te, com a adoração de Cristo por sua cruz e com a coragem dos mártires nos circos romanos”, dizia ela em uma epístola. “Quem sou para adorar-me? Deixa-me pô-la no altar de minha vida e ofertar-te-ei todas as flores do meu coração. Dar-te-ei meu nome, minha existência. A ti entregarei a proteção de meus braços, o conforto da minha alma. E mesmo que eu não esteja junto de ti, jamais sentirás solidão porque meu amor te cobrirá como um manto cobre solenemente a mais pura de todas as santas.”
Ele era como a terra, firme, fértil, pronta para o arado. Ela era como a chuva fina, calma, leve, doce mensageira do desabrochar das flores...
Já não podiam mais ficar um sem o outro. Então, depois de trocarem inúmeras correspondências, marcaram o primeiro encontro. Ela estava ansiosa. Pôs seu vestido de borboletas e pediu para que elas parassem de voar pelo seu estômago. Ele tinha nas mãos suadas e trêmulas a prova da emoção que invadia seu coração. Finalmente viram-se pela primeira vez. Aproximaram-se e como um passe de mágica, um olhar estava dentro de outro olhar... Então abraçaram-se silenciando todas as palavras num beijo que tinha sabor de saudade.

O pé de rosadá

Sempre fui uma pessoa apegada a sons, aromas e sabores. Bem, observando minha forma física, muito mais em sabores do que em aromas e sons. Quando cheguei à emissora de rádio para editar um material de áudio da prefeitura em que trabalho, vi uma plantinha bastante familiar... Era um arbusto filhote ainda, quase imperceptível, meio sem graça, visto que suas folhas estavam maltratadas e seus frutos escassos. Era um pé de rosadá. Imediatamente, fui transportada para a infância vivida no sítio do meu avô, no povoado Estiva, na cidade de Coruripe.
Viajei até aquela casa, situada no alto de um morro, ladeada pelo alpendre onde redes e cadeiras de balanço convidavam para o descanso - se bem que a última coisa que uma criança queria, naquele paraíso, era descansar. Os quatro quartos eram simples, de piso grosso, com camas de madeira firme e lençóis caprichosamente lavados exalando cheiro de sabão em pó. O quarto de meus avós era um caso a parte: tinha guarda-roupa grande, penteadeira com muitos perfumes, talco, pó de arroz, cremes e muitas imagens de santos e terços. As marcas dos cosméticos eram populares, mas faziam a nossa festa. Todos tinham janelas enormes que permitiam a ampla entrada do sol e do vento. Fui levada pelo cheiro da lembrança àquelas salas de jantar e TV, onde religiosamente, todos os domingos, eu assistia ao Globo Rural, na companhia do meu avô, ouvindo a música tema de Renato Teixeira “Amanheceu, peguei a viola” e via a abertura linda que a emissora do plin-plin deixou de exibir.
A cozinha, que além do fogão a gás trazido pela modernidade, tinha um típico fogão à lenha, que era utilizado para cozinhar o feijão de arranca, temperado apenas com sal. Não que faltassem condimentos na casa de meus avós. Mas ele, o feijão, era preparado dessa forma, e confesso que jamais provei algo tão gostoso. Tentei prepará-lo igual em casa, mas não surtiu o mesmo efeito. Acho que a mágica estavam naquelas panelas sujas de cinza, nas lenhas do fogão e principalmente nas mãos calejadas de minha avó.
O quintal parecia um planeta colorido, saboroso com cajueiros, jaqueiras, bananeiras, goiabeiras, saputis, mangueiras, jabuticabeiras, limoeiros, laranjeiras, pitombeira, pés de café... Não que meu avô tivesse sido barão de café, porque com o escasso dinheiro, ele seria, na brincadeira, um café com leite. Mas tínhamos um pé e provávamos da fruta que por incrível que pareça, tem um sabor doce, meio enjoativo.
A oficina onde o caminhão e a saveiro eram consertadas, também era a montadora dos carros de rolimã, e carrinhos feitos de lata de óleo com os quais meus primos costumavam brincar.
Havia do outro lado da estrada de barro, um sítio de manga, com campo de várzea, para os famosos rachas, um cercado com algumas vacas que supriam nossa necessidade de leite fresco e o limite entre a terra vizinha, era o Rio Coruripe. Existia também uma casa de farinha onde descascávamos mandioca, colocávamos em sacas e meus tios colocavam sob a prensa, para retirar o líquido tóxico da raiz. Depois desse processo, a massa crua era peneirada por nós, em uma folia contagiante e levada ao forno de lenha, grande, redondo onde meus tios mexiam a melhor farinha que já comi. Lá, na casa de farinha, as risadas eram soltas, sem pudores e nós, as crianças, sempre a enlouquecer o juízo dos mais velhos – Eu mais que os outros, já que vivia às turras com meus primos e às quedas, porque falta de equilíbrio e coordenação me acompanha desde sempre. Qualquer semelhança com o fato de eu ser acadêmica de fisioterapia, não é mera coincidência.
Nas refeições, a mesa era farta de comida e principalmente de gente. Meu avô como típico patriarca do interior nordestino, não permitia que viva alma saísse de sua casa de estômago vazio. Tinha que estufar! “Coma!” Ordenava. “Tem feijão, arroz, macarrão, charque, carne guizada, peixe frito e salada. Se ‘silva’”, dizia ele em sua ingênua falta de traquejo na pronúncia da língua portuguesa.
Perto da casa de farinha, tinha uma mangueira e abaixo dela, um tronco quase sexagenário onde sentávamos as tardes para prosear e as noites para cantar ao som extraído das cordas surradas, porém afinadas do violão de meu tio.
Nas férias, ao chegar naquela casa, na subida do pequeno morro, o cheiro daquela planta sinalizava que minha festa estava apenas começando. Quando vejo o arbusto florido lembro-me daquele lugar, da minha infância muito bem vivida.
Confesso que antes de escrever esse post, liguei para minha prima e perguntei: “Kássia, como é mesmo o nome daquela planta que tem o cheiro da casa da vovó?” E sem pestanejar, ela respondeu: “Ah! É o pé de rosadá”.

Contradições do amor


Amor amigo
Amor de irmão
Amor pela pátria
Amor sem razão
Amor louco
Amor sem direção
Amor em devaneios
Que abraça a solidão
Amor que imagina
A chegada do novo ser
Amor que brinca
Fazendo anoitecer
Amor com pecado
Amor sagrado
Amor que perdoa
E é perdoado
Amor que foge
Amor vadio
Amor que desperta
Um bocado de arrepios
Amor que geme
Amor que delira
Amor que solta
Risadas de alegria
Amor concreto
Amor abstrato
Amor que se mostra
No calor do abraço
Amor que machuca
Amor que faz chorar
Amor que vai embora
Pra nunca mais voltar.

O Jantar


Morar sozinha tem lá suas vantagens: Você é a dona do controle remoto, não existe fila de espera no banheiro, ninguém reclama de sua calcinha pendurada no box, o creme dental não é estrangulado ao meio e não há a necessidade de manter a casa rigorosamente em ordem. Mas como tudo nessa vida existem prós e contras...

A hora da refeição é a mais chata. Justamente pelo fato de morar sozinha, quase não cozinho e vivo a comer qualquer coisa que se apresente apetitosa ao olfato e a visão. Ontem, senti uma incrível vontade de cozinhar e resolvi preparar o bom e velho macarrão.

Gosto do penne porque além de ter o cozimento rápido, qualquer gororoba fica chiquérrima feita com ele. Cozida a massa, fiz um molho rosado, com um toque de creme de leite e fritei umas tiras de frango empanado. Quando olhei para as panelas dispostas sobre o fogão, percebi que havia feito o jantar para duas pessoas. Não que eu tivesse esperando alguém para provar a "iguaria", é que meu inconsciente prepara sempre para dois, porque cozinhar para mim mesma é coisa que não me agrada.

Preciso imaginar que alguém especial vai chegar e iremos brindar o prazer de uma maravilhosa companhia. Forrei a mesa com uma toalha branca, arrumei pratos, talheres e copos e abri a janela como a convidar o vento para me acompanhar. Olhei a noite estrelada, clareada pela lua crescente e senti saudades... Ao degustar o primeiro bocado, senti vontade de ouvir: "amor, está maravilhoso!" Mesmo que o elogio fosse apenas a gentileza de um romântico incorrigível. Depois do jantar solítário e saudoso, levei a louça até a pia, lavei e liguei a TV. Ouvi a música característica da chuva, que me fez adormecer e despertar em um sonho nostálgico cheio de felicidade.

Os culpados


Não sei bem como teve início esta história de escrever... Às vezes, o assunto vinha, mas nunca podia expressar as idéias em letras porque sempre estava no ônibus indo para faculdade. – A não ser que eu quisesse treinar minha coordenação motora, ou fazer um curso intensivo para ser cobradora de ônibus. – De quando em vez, no trabalho, eu escrevia algumas linhas, porém não ousava mostrá-los nem para Deus.
Até que um dia, Marcela Martine, jornalista e amiga aqui no trabalho, apresentou-me o blog de outro jornalista: Carlos Nealdo. Após “devorar” os textos dele e estabelecer contato com o autor, tomei um comprimido de coragem (na verdade, foi uma injeção de 20 ml tipo mata leão) e mostrei alguns textos e ele, muito gentilmente, pediu que eu os tornasse públicos na internet. Marcela, também “sacudiu” minha cabeça com essa história de blog e até minhas professoras de neuropediatria, Vannessa Almeida e ortopedia, Aline Carla, encheram-me de caraminholas. E hoje, tenho plena convicção de que as maiores loucuras de nossa vida são incentivadas pelos amigos.
Escrever é colocar muito de si em poucas linhas traçadas. É mostrar a alma quase num atentado violento ao pudor. É ser um pouco de tudo, de médico a louco, o que todo mundo tem um pouco!
Vivo em devaneios... Não consigo estar completamente em terra firme. Se tenho um tempinho, lá estou fazendo companhia a São Jorge, no mundo da lua. Acho que foi por isso que ascendi seu cargo para meu santo protetor. (E olhe, que nem sou católica!).
Gosto de imaginar e sinceramente, imagino de tudo. Graças a Deus, o pensamento não conhece censura. Imagina só, aquela voz padrão de televisão dizendo: “Esse pensamento é proibido para menores de 80 anos.” Risos... Calma, gente! Eu não sou uma despudorada, nem o objetivo deste blog é chocar as mentes puritanas. É que vivo em mundos paralelos e para encarar a realidade que me envolve, necessito me alimentar de sonhar.

Quem sou eu

Minha foto
As vezes uma brisa, as vezes um livro, as vezes uma música, as vezes um sorriso, as vezes uma lágrima, as vezes tudo, as vezes nada e sempre uma contradição.