O apagar das luzes



A vivência acadêmica na área de saúde nos mostra a fragilidade do ser humano. A linha entre sanidade e loucura, vida e morte, lucidez e desorientação é extremamente tênue. A Fisioterapia tem em seu cronograma de estágio, a participação na comunidade. E é exatamente nela, que percebemos a falta de políticas públicas (que só esse tema dá um post inteiro) e enxergamos o quanto somos vulneráveis. Tenho uma paciente idosa de 73 anos de idade. Foi acometida pela Demência de Alzheimer há exatamente treze anos. Ao avaliá-la, percebi que sua mente falha, a deixa uma verdadeira criança. As vezes agressiva, outras vezes sorridente, é a genuína expressão da fraqueza humana. Seu olhar se perde em atitudes impensadas, sua língua, já não articula bem as palavras, sua alma parece está em um planeta distante, que pertence só e exclusivamente a ela, sua memória, já não recorda mais de si e assim, ela mesma já não sabe quem é. Nesses casos, o treino cognitivo (despertar o aprendizado) faz parte da rotina do tratamento desses pacientes. Hoje, "brincamos" de contar e reconhecer as cores. Sua fala desarticulada, contou apenas de um a dez e chegou ao número quinze depois de pular tantos outros. No reconhecimento das cores, ora acertava, ora errava e encerrava a conversa afirmando: "não sei mais não minha doutora". A família se perde sem respostas e sofre em vê um ente tão querido alheio a tudo o que se passa. Há uma desesperança no ar e sentimos que ela, a família, já não quer tentar mais nada porque sabe que a doença não tem cura e é progressiva. Nossa função ao lado desses pacientes, é retardar essa progressão o quanto possível e ofertar qualidade de vida a essas pessoas. Porém, o cérebro funciona como uma cidade iluminada. As correntes elétricas fazem os neurônios acenderem todas as lâmpadas existentes. Mas existe um homem chamado Alzheimer que lenta e infatigavelmente, apaga lâmpada por lâmpada, deixando cada esquina, cada ponto desta cidade sem luz e assim, ao final, a cidade está inteiramente às escuras. Sem história, sem lembranças, sem vida.

O sabor da realidade

Sempre morei no interior do Estado, porém com a oportunidade de estudar na capital, indo e vindo todos os dias. Por conta do estágio da faculdade, tive que optar em morar em Maceió para que eu podesse me dedicar de forma integral a essa etapa da vida acadêmica. Para mim, não há capital mais linda e como sou uma alagoana bairrista, tenho absoluta certeza de que Deus reservou o melhor do paraíso para os alagoanos. Mas além das belezas, do acesso mais rápido a cultura e das facilidades que os grandes centros urbanos oferecem, esses mesmos lugares fazem de nós lixos humanos.
Estava no calçadão do comércio com uma amiga, quando fui abordada por um garoto de mais ou menos 16 anos. Mal vestido, sujo, despenteado, era a personificação da desesperança. Me cutucou do lado e quando o vi tomei um susto. Ele perguntou: "Moça, a senhora tem um dinheiro para eu lanchar?" Sentindo o medo me invadir, disse que não tinha e ele com a dura experiência da vida margeada pelo preconceito, levantou a que deveria ser sua única camisa e falou: "Não precisa se assustar não, moça. Eu não vou lhe roubar, só estou com fome". Engoli sem mastigar aquela afirmação que encheu de amargor o meu paladar. Voltei pra casa, tomei banho e fui para a aula. Antes, passei em um supermercado e comprei 2 garrafinhas de iogurte, abri uma e fui bebendo pelo caminho. Passei por um lugar meio deserto e lá estava um casal sentado na calçada guardando seus únicos pertences em uma sacola plástica. Quando estava dando o último gole, meus olhos se encontraram com o olhar daquele homem sedento por dignidade e pela primeira vez, tive vergonha de ter algo para comer. Ele não dissera coisa alguma, porém seu olhar era uma súplica. Abri a sacola, retirei a outra garrafinha e dei aquele homem que humildemente sorridente, agradeceu.
Depois que saí da aula, já a noite, fui respirar um pouco de ar e encontrei o "baiano". Na verdade, ele me encontrou. Cheio de alegria e vazio de oportunidades, era o retrato do trabalhador que mesmo frustrado, carregava um fio de esperança em seu olhar. Ofereceu-me seus produtos em troca de três reais. Brincos de arame, pulseiras de barbante. Segundo ele vivia de arte e cultura. Perguntei sobre sua família, seus filhos, sua vida e a cada palavra dita, o cheiro da bebida ficava mais forte. "Moça, eu vim da Bahía, deixei 3 filhos que estudam e são cuidados por minha mãe. Sei pintar, construir, mas gosto de viver de arte e cultura, andando pelo mundo". Perguntei porque ele bebia e com seu sotaque característico, abriu um sorriso e argumentou: "Eu bebo, para esquentar meu corpo porque dormir na beira da praia não é fácil. Faz muito frio. A gente nem dorme direito, porque se dormir, um outro vem e rouba nossa mercadoria. Eu estou na rua, mas vivo com dignidade e preciso garantir meu café de amanhã". Muito mais com peso de consciência do que vontade de comprar, escolhi uma de suas peças e ele se foi.
Ontem pela manhã quando ia em direção ao curso que estava fazendo, encontrei outro homem deitado na rua ainda adormecido. Sujo, encolhido, com as mãos dentro de sua camisa porque a roupa do corpo era a única coisa que tinha para se aquecer. Olhei para minha vida, para as oportunidades que tive e senti vergonha. Vergonha por ter tanto e aquele ser tão humano quanto eu, não ter um teto para se abrigar.
Maceió é carinhosamente chamada de Cidade Sorriso, mas diante de situações tão gritantes, percebi que este, encontra-se pra lá de sem graça.

Quem sou eu

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As vezes uma brisa, as vezes um livro, as vezes uma música, as vezes um sorriso, as vezes uma lágrima, as vezes tudo, as vezes nada e sempre uma contradição.